22 de jun. de 2013

Os ônibus e as probabilidades

Seu primeiro sentimento da semana não poderia ter sido mais enérgico: Sentiu um ódio repentino pelo som do despertador, que emulava a sirene de um complexo nuclear. O despertador era um aplicativo do seu dispendioso tablet – único fator que o impedia de, de fato, parti-lo ao meio. Era seu segundo dia na universidade, e ele já criara um ódio profundo em acordar junto ao sol.
          Ao pôr os pés no chão, em questão de minutos já caminhava com seu velho par de All Stars, rumo à parada de ônibus. Pouco mais de uma hora, subia escadarias que o levariam à sua sala de aula. Ele ainda não era um universitário, pois tomara parte em uma espécie de curso preparatório para estudantes “menos aptos”.  Não que de fato o fosse, mas sentia que necessitava de conhecer essa tão falada vida de estudante – até agora decepcionante. Ao subir as escadas, já admirava a bela combinação do campus: prédios sólidos; fauna variada, sicômoros e figueiras entrelaçadas por líquenes e trepadeiras; e, como toque final, uma casta inteira de jovens de subgêneros variados: do punk extremo ao hippie duvidoso.
      Ele se sentia bem em meio a essa corja pouco convencional, e, como sempre fora relativamente atípico, se sentia relativamente em casa. Afora a matemática excessiva que passara a presenciar e idolatrar, tudo lhe agradava muito.
          Ao término da segunda aula, estava esgotado. Seu professor demonstrava sinais sensíveis de Asperger, marcados pelo grande intelecto e pela pouca capacidade de interagir psicoativamente. Era um poço fechado de conhecimento. Seus colegas compartilhavam essa sensação, o que refletia na velocidade com que a sala da aula esvaziara-se.
           Agora figurava na parada, esperando pela locomoção ao som de Bethoven. A décima quarta Sonata para piano estava no meio do segundo movimento quando notou que seu ônibus já estava disponível, e correu para garantir seu assento. Existe um momento de limbo entre pagar a passagem e atravessar a roleta, um momento de êxtase estático onde é difícil se dar por conta do que acontece na transição de pedestre para passageiro. Tudo o que ele sabe é que, ao se recuperar, teve seus olhos desviados para alguma entidade de óculos, ao fundo ônibus.
       Era uma garota aparentemente comum, pele clara e cabelo longo. Devia estar no mesmo estado de pseudo-estudante que ele. Ele tentou desviar o olhar, mas sentia como se algum tipo de magnetosfera agisse naquele momento. Acabou se aproximando dela, e, quando se deu por conta, estava a ponto de sentar ao seu lado. Ele até o teria feito, se ela não tivesse optado por acomodar-se no banco do corredor. Ele não conseguiria dirigir-lhe a palavra para pedir passagem, então, com o raciocínio lógico comprometido, optou por sentar-se na fileira de bancos à sua frente.
O terceiro movimento da sonata de Bethoven tinha acabado de começar, e ele foi pego de sobressalto por seus enérgicos arpejos. Ele diminui o volume, e trocou de faixa. Não sentia tal euforia, e optou por Sonho de Amor, do Liszt. Com todas suas forças, tentou se focar na melodia e nos passantes da calçada. Não pôde. A imagem da garota de óculos permeava seus acordes, desafinando seus violinos e desencontrando seus percursionistas.
Ele precisava agir. Teve sucesso em lançar alguns olhares periféricos desenxabidos, e pôde admirar parcialmente sua beleza. Acabou cometendo o erro de observá-la pro tempo demasiado, e seus olhos terminaram por encontrarem-se. Ele corou profundamente, e não mais arriscou olhares tão diretos; limitou-se ao reflexo do visor do seu velho celular. Então lhe veio a hipótese de lhe falar. Como não pensara nisso antes?! Poderia quebrar o gelo com qualquer bobagem minimalista do dia a dia, bastava a coragem para que suas cordas vocais vibrassem e criassem ondas sonoras de comprimento suficientemente largas para que se tornassem audíveis. É tudo uma questão de física ondulatória, onde a altura da sua voz seria proporcional à intensidade da vibração de suas cordas vocais.
Nunca fora tão difícil fazê-lo. Seguiu num silêncio contemplador, deixando que sua sina fosse carregada pelas correntes oceânicas.
A linha do ônibus terminava em uma grande estação,  que servia como referência para diversas outras linhas.  Desceram quase que simultaneamente, e seguiram juntos até certa parte da estação, onde se separaram, pois ele tinha um destino; e ela, outro. Ele havia passado por Mozart, Schumann e até Chopin; mas as feições da moça insistiam em se materializarem no seu subconsciente, lhe pegando de surpresa.
E assim se seguiram as próximas horas. Teria sido aquilo amor à primeira vista? Ele não sabia. Sabia que ela era linda, que devia ser inteligente e que usava óculos. Sabia que as probabilidades que havia os posto no mesmo ônibus – a centímetros de distância um do outro – eram ínfimas; e que, embora tentasse negligenciar esta verdade, dificilmente voltariam a se ver. Dificilmente voltaria a corar quando seus olhos se encontrassem, e sentia que ela continuaria a desafinar suas sinfonias por dias.
        Culpou a si mesmo por não ter iniciado a conversa, assim como culpou as probabilidades matemáticas que regem nosso universo por ter-lhe posto de fronte a alguém tão marcante, ao mesmo tempo tão inacessível.
      Voltaria a vê-la? Era incerto. Ele não possuia palavras para descrever o que sentia. É justamente quando falham as palavras que a música entra em cena. Enquanto ouvia Villa-lobos chorar, rezou às probabilidades.

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