Seu primeiro sentimento da semana
não poderia ter sido mais enérgico: Sentiu um ódio repentino pelo som do
despertador, que emulava a sirene de um complexo nuclear. O despertador era um
aplicativo do seu dispendioso tablet – único fator que o impedia de, de fato,
parti-lo ao meio. Era seu segundo dia na universidade, e ele já criara um ódio
profundo em acordar junto ao sol.
Ao pôr
os pés no chão, em questão de minutos já caminhava com seu velho par de All
Stars, rumo à parada de ônibus. Pouco mais de uma hora, subia escadarias que o
levariam à sua sala de aula. Ele ainda não era um universitário, pois tomara
parte em uma espécie de curso preparatório para estudantes “menos aptos”. Não que de fato o fosse, mas sentia que necessitava
de conhecer essa tão falada vida de estudante – até agora decepcionante. Ao
subir as escadas, já admirava a bela combinação do campus: prédios sólidos; fauna
variada, sicômoros e figueiras entrelaçadas por líquenes e trepadeiras; e, como
toque final, uma casta inteira de jovens de subgêneros variados: do punk
extremo ao hippie duvidoso.
Ele se sentia
bem em meio a essa corja pouco convencional, e, como sempre fora relativamente
atípico, se sentia relativamente em casa. Afora a matemática excessiva que
passara a presenciar e idolatrar, tudo lhe agradava muito.
Ao
término da segunda aula, estava esgotado. Seu professor demonstrava sinais sensíveis
de Asperger, marcados pelo grande intelecto e pela pouca capacidade de interagir
psicoativamente. Era um poço fechado de conhecimento. Seus colegas compartilhavam
essa sensação, o que refletia na velocidade com que a sala da aula
esvaziara-se.
Agora
figurava na parada, esperando pela locomoção ao som de Bethoven. A décima quarta Sonata
para piano estava no meio do segundo movimento quando notou que seu ônibus já
estava disponível, e correu para garantir seu assento. Existe um momento de
limbo entre pagar a passagem e atravessar a roleta, um momento de êxtase
estático onde é difícil se dar por conta do que acontece na transição de pedestre
para passageiro. Tudo o que ele sabe é que, ao se recuperar, teve seus olhos
desviados para alguma entidade de óculos, ao fundo ônibus.
Era uma
garota aparentemente comum, pele clara e cabelo longo. Devia estar no mesmo estado
de pseudo-estudante que ele. Ele tentou desviar o olhar, mas sentia como se
algum tipo de magnetosfera agisse naquele momento. Acabou se aproximando dela,
e, quando se deu por conta, estava a ponto de sentar ao seu lado. Ele até o
teria feito, se ela não tivesse optado por acomodar-se no banco do corredor.
Ele não conseguiria dirigir-lhe a palavra para pedir passagem, então, com o raciocínio
lógico comprometido, optou por sentar-se na fileira de bancos à sua frente.
O terceiro movimento da sonata de Bethoven tinha acabado de começar, e ele foi pego de sobressalto por seus
enérgicos arpejos. Ele diminui o volume, e trocou de faixa. Não sentia tal
euforia, e optou por Sonho de Amor, do Liszt. Com todas suas forças, tentou se
focar na melodia e nos passantes da calçada. Não pôde. A imagem da garota de
óculos permeava seus acordes, desafinando seus violinos e desencontrando seus percursionistas.
Ele precisava agir. Teve sucesso
em lançar alguns olhares periféricos desenxabidos, e pôde admirar parcialmente
sua beleza. Acabou cometendo o erro de observá-la pro tempo demasiado, e seus
olhos terminaram por encontrarem-se. Ele corou profundamente, e não mais
arriscou olhares tão diretos; limitou-se ao reflexo do visor do seu velho
celular. Então lhe veio a hipótese de lhe falar. Como não pensara nisso antes?!
Poderia quebrar o gelo com qualquer bobagem minimalista do dia a dia, bastava a
coragem para que suas cordas vocais vibrassem e criassem ondas sonoras de
comprimento suficientemente largas para que se tornassem audíveis. É tudo uma
questão de física ondulatória, onde a altura da sua voz seria proporcional à
intensidade da vibração de suas cordas vocais.
Nunca fora tão difícil fazê-lo.
Seguiu num silêncio contemplador, deixando que sua sina fosse carregada pelas
correntes oceânicas.
A linha do ônibus terminava em
uma grande estação, que servia como
referência para diversas outras linhas.
Desceram quase que simultaneamente, e seguiram juntos até certa parte da
estação, onde se separaram, pois ele tinha um destino; e ela, outro. Ele havia
passado por Mozart, Schumann e até Chopin; mas as feições da moça insistiam em se
materializarem no seu subconsciente, lhe pegando de surpresa.
E assim se seguiram as próximas horas.
Teria sido aquilo amor à primeira vista? Ele não sabia. Sabia que ela era linda, que devia ser inteligente e que usava óculos. Sabia que as probabilidades que
havia os posto no mesmo ônibus – a centímetros de distância um do outro – eram ínfimas;
e que, embora tentasse negligenciar esta verdade, dificilmente voltariam a se
ver. Dificilmente voltaria a corar quando seus olhos se encontrassem, e sentia
que ela continuaria a desafinar suas sinfonias por dias.
Culpou
a si mesmo por não ter iniciado a conversa, assim como culpou as probabilidades
matemáticas que regem nosso universo por ter-lhe posto de fronte a alguém tão
marcante, ao mesmo tempo tão inacessível.
Voltaria
a vê-la? Era incerto. Ele não possuia palavras para descrever o que sentia. É justamente quando falham as palavras que a música entra em cena. Enquanto ouvia Villa-lobos chorar, rezou às
probabilidades.
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